Em 1629, o Batávia, orgulho da Companhia Holandesa das Ãndias Orientais, encalha com 330 pessoas em um recife dos Abrolhos Houtman, a 80km do continente australiano. Antes de o navio afundar, há tempo para que todos se salvem, recolham mantimentos e acampem em pequenas ilhas. Quatro dias depois, o capitão e os melhores marinheiros partem em botes salva-vidas para buscar ajuda. Os náufragos sentem-se ainda mais sós, mas encontram água e têm provisões.
  Nas semanas seguintes, o boticário Jeronimus Cornelisz, um dos passageiros, arregimenta cúmplices, toma o poder e impõe o terror: homens torturados, crianças massacradas, mulheres estupradas. Só um grupo opõe resistência, dominando outra ilha. Começa uma pequena guerra, muito sangrenta. O socorro chega três meses depois, quando 2/3 dos náufragos já haviam sido assassinados. A Companhia Holandesa, que tinha poderes de Estado, julga e executa os culpados. Graças a esse processo judicial, preservado até hoje, com depoimentos de setenta sobreviventes, conhecemos em detalhes o impressionante dia-a-dia dessas pessoas isoladas.
  "Náufragos do Batávia", no fundo, é uma reflexão sobre a natureza humana, pois a tragédia é quase incompreensÃvel: com os recursos que tinham, todos poderiam ter vivido em paz, sem passar grandes necessidades, enquanto aguardavam ajuda. Como um psicopata conseguiu subjugar mais de 250 pessoas honestas? Os massacres que comandou não obedeciam a nenhuma necessidade de sobrevivência. O que leva os homens a fazerem o mal?
  Narrando com mestria o drama do Batávia, em um texto direto e compacto, Simon Leys vai dando preciosas indicações: a eloquência do criminoso, a ousadia dos seus métodos, a surpresa do seu comportamento, a trama que concebeu, a sensação geral de desamparo, a perda de referências, a docilidade dos bons.
  Prosper, a segunda narrativa do livro, também se passa no mar, numa embarcação bretã envolvida na pesca do atum. Na companhia de homens endurecidos, Leys vive a completa ausência de privacidade, a dureza do cotidiano, as conversas sem fim, o vÃcio do álcool. Um trabalho árduo, uma convivência difÃcil. Mas, quando um marinheiro cai doente, o capitão decide voltar, para tentar preservar sua vida, arcando com os enormes prejuÃzos de uma decisão que poderia não ter sido tomada. O que leva os homens a fazerem o bem?
  Passadas no mesmo ambiente do mar, com séculos de distância, as duas narrativas reais se completam, tratando do eterno enigma humano.
            César Benjamin
|